João tinha vinte anos como motorista de ônibus e cinco na linha 66.6, todos os dias às 03:00 da manhã saia da rodoviária do Plano Piloto tendo como destino a Ceilândia, cidade satélite de Brasília. O “corujão” como são chamados os ônibus que trafegam pela madrugada, levava geralmente trabalhadores noturnos e curtidores da noite da capital do país.
João já se acostumara com o horário e até gostava, geralmente tinha uma amizade com os passageiros por serem na maioria das vezes os mesmos.
Suzana, um travesti, era a mais animada e como sempre entrou fazendo barulho:
— Boa noite motora, é hoje que finalmente vou pegar na marcha? — Com bom humor João respondeu:
— Não mesmo Suzi.
Em seguida entraram os garçons Cláudio e Luis, os vigilantes Cabeça, Gordo e ET, um jovem calado que parecia ser estudante, mas que Suzi dissera que era gogo boy, e assim o ônibus ia tendo os lugares preenchidos na rodoviária, com exceção de dois. Toda a noite era assim e isso assustava João. O coletivo tinha cadeiras duplas no lado direito e uma fila de cadeiras únicas no esquerdo e, era nele que sempre dois lugares ficavam desocupados, o terceiro, e o último que era o motivo de seus arrepios.
As pessoas até sentavam no terceiro, mas levantavam rapidamente. “Ele é ruim, é como se você estivesse sentada sobre algo”, dissera dona Rosângela. “É estranho João, mas não é confortável”, explicara Mario, um policial que pegava o ônibus de vez em quando. Só Ricardinho ficava uma viagem inteira lá.
O último João não precisava perguntar o motivo de não ser ocupado logo na rodoviária, pois alguém sentava nele. Diariamente no ponto em frente à Catedral subia no coletivo um homem de, sobretudo, capuz até os olhos, barba desgrenhada até o peito, não falava, sentava-se no último lugar, puxava um caderno e começava a escrever.
— Ele frequenta os inferninhos do Conic. — Afirmara Suzi em sussurro referindo-se aos bares barra-pesada do Setor de Diversões Sul de Brasília.
“O Mago”, assim João apelidou-o, pois ninguém sabia seu nome e sequer tinham conseguido arrancar uma única palavra dele, exceto quando ficava parado em pé ao terceiro banco murmurando algo, isso definitivamente deixava as pessoas com medo.
Entretanto, o lugar vazio e o Mago não eram os únicos mistérios que João tentava arrancar dos pensamentos e que sempre acabavam assombrando-o antes do sono. “O último ponto da estrutural” era o que mais o intrigava.
Após deixar o Eixo Monumental o ônibus seguia para a via Estrutural e lá havia um Ponto de Descida, ou como dizem os candangos, uma Parada. O local era totalmente deserto, cercado por matos, sem qualquer iluminação e já fora palco de crimes e desova de corpos. Todos os dias alguém apertava o sinal de descida e ele parava no local com temor, pois ali era fácil ser vítima de assalto, abria a porta e uma menina loira descia; isso o intrigava, pois nunca a via entrando e pior, os passageiros reclamavam por ele parar e não descer ninguém.
— Droga João — disse o cobrador — toda vez você para nesse lugar sem ter ninguém pra descer, tá de sacanagem?
— Tá maluco? A menina loira acabou de descer.
— Menina loira? Voltou a tomar rebite?
— Vá se fuder Marcelo! Tem uma menina que sempre desce aqui, ela acabou de descer. — João disse irritado.
— O nome dela é Melissa — Ricardinho gritou do terceiro banco onde estava sentado. João falou para o cobrador:
— Tá vendo idiota! O Ricardinho a viu e até sabe o nome. — Marcelo respondeu:
— João, o Ricardinho não é parâmetro, cara. Acho que você precisa procurar ajudar, garanto para você que sempre que você abre as portas aqui não desce ninguém.
— Isso é verdade. — Alguns passageiros afirmaram.
— Melissa. — O jovem repetiu o nome.
Ricardinho era um garoto portador de necessidades especiais, ele e sua vó moravam em Luziânia, cidade do Goiás no entorno de Brasília, e três vezes por mês faziam essa viagem de madrugada para que fossem os primeiros atendidos no psiquiatra onde fazia o tratamento. “Realmente ele não é parâmetro, será que estou ficando louco?”, pensou distraindo-se e pulando uma lombada para xingamentos geral.
No dia seguinte disposto a resolver o mistério João observou pelo espelho os passageiros, o ônibus estava mais cheio que o normal, Ricardinho estava sentado no terceiro lugar e o Mago no fundo, havia pessoas em pé e ele não conseguiu ver a menina loira. Entretanto, antes da via atingir a BR-070, o sinal de descida foi acionado. “A última parada da Estrutural”. Algumas pessoas protestaram, mas ele ignorou e parou.
— De novo João? — Exclamou o cobrador Marcelo, mas João fixou os olhos no espelho retrovisor. Cabelos loiros desceram. Ele abriu a porta da frente e desceu correndo na escuridão.
— Aonde você vai? — Alguém gritou pela janela.
— Estou apertado, vai ser rápido!
— Volte! — Uma voz grave soou. Era o Mago. Aquilo o fez paralisar, o homem nunca tinha falado.
— Para sua segurança volte. — O estranho reiterou.
João tremeu de medo. Ele andou um pouco até o matagal, mas não avistou ninguém. “O que está acontecendo?”, questionou-se; “Estou ficando louco!”. Tinha certeza que alguém tinha descido. Respirou fundo e começou a voltar. Entretanto, de relance viu um vulto de mulher passando em meio ao mato. Cabelos loiros esvoaçando. Saiu correndo e se embrenhou no cerrado. Precisava provar para todos que não tinha enlouquecido.
— Aqui João. — Uma voz feminina falou.
— Melissa?
— Sim, João. Estou aqui, me ajude.
A voz lembrava a de sua filha e o pedido de socorro ativou seu instinto paternal. Correu ainda mais, mas no meio das árvores retorcidas e do céu sem lua nada via. O vulto cruzou seu caminho novamente. Lá estava ela, correndo. “Uma menina” pensou. E disparou atrás dela.
— Vem João!
Ele acelerou, tropeçando em buracos e raízes, corria cambaleando, chegou bem perto, estendeu a mão, tocou nos cabelos e foi parado. Uma dor súbita atingiu-o. Olhou para baixo e viu um galho pontudo atravessando sua barriga. Um fio loiro estava preso em sua mão. “Não era coisa da minha cabeça”, gemeu. De olhos arregalados viu o Mago parado na escuridão anotando algo em seu caderno. Um trovão ressoou e João rendeu-se às trevas.
Próxima parte: Linha 66.6 – O Mago