quarta-feira, 25 de junho de 2014

A boa regra gramatical jamais deve ser uma camisa-de-força semântica nem sintática

Por Sidney Silveira - Blog Contra Impugnantes

QUEM NÃO CONSEGUE apreciar as dissonâncias oriundas das quebras conscientes de algumas normas gramaticais em prol da expressividade ou da clareza jamais poderá ser verdadeiro escritor. O motivo é elementar: o uso virtuoso de um idioma jamais se limita aos ditames da ciência normativa da linguagem, à qual chamamos gramática, mas pressupõe o domínio de algo que lhe é anterior, a saber, a índole mesma da língua, constitutivo formal de que a própria gramática se vale para codificar tendências e potências jazentes na estrutura mental de uma coletividade de falantes e escreventes de qualquer língua que seja. Não se chega, portanto, a um nível de compreensão superior de nenhum idioma apenas com a leitura dos bons gramáticos, pois esta deve ser complementada pela inescapável recorrência aos grandes poetas e prosadores, que elevaram o padrão da linguagem conotativa ao estado da arte. Por isso a boa regra gramatical jamais deve ser uma camisa-de-força semântica nem sintática, mas o razoável ponto de apoio para que a língua possa realizar de maneira plena as suas virtualidades expressivas. Não por outro motivo, diz o filósofo tomista Álvaro Calderón que a gramática serve à linguagem, e não o contrário.


quinta-feira, 5 de junho de 2014

A conversão de um deus


Definitivamente Spuk é um deus mal. Não importa o que os sacerdotes do alto templo digam, não acredito neles.

Spuk é o deus do mundo, os Louvadores dizem que sentado em sua cripta em Aviloan ele escreve nossas histórias com sua pena de misericórdia. Tenho uma visão diferente. Acredito que Spuk, em sua sodomia, gargalhe com nossa desgraça, pois desde que apareceu restou-nos apenas o caos.

Há alguns anos tínhamos outros deuses. Rochedo, Senhor da Terra, Aurora Senhora dos Céus, Marinho, Senhor das Águas, Homo, Senhor dos Viventes e, Rajada, Senhora dos Ventos. Todos reinavam a partir de Aviloan, o grande monte redondo do céu noturno.

Eu era criança, mas lembro de momentos bons. Vivíamos do que o mundo provia. Caça, pesca e colheita. Essa era a vida de todos em Camposverdes.

Nós tínhamos uma pequena casa na Colina das Flores, atrás uma horta onde crescia nosso alimento e um pouco de nosso comércio. Ao lado o riacho proporcionava alguns peixes. Também descíamos em direção da mata para caçar; Kai e Kan, nosso casal de cães caçadores eram a vanguarda. Nosso pai montava o Crina Negra, nosso avô a Donzela Esguia, Carvin e eu íamos a pé com os arcos.

Foi na penumbra de um dia prestes a amanhecer que presenciamos o despertar do medo. Estávamos preparados para mais uma caçada quando bolas de fogo rasgaram o céu. Passavam rápidas e deixavam rastros luminosos que depois eram engolidos pela escuridão.
Os cavalos assustaram-se e os cães uivaram. Buscamos o olhar do nosso pai e ele procurou o do vô. O velho Sávio gaguejou antes de conseguir falar:

— Alguma coisa está acontecendo em Aviloan! Que Krainã a proteja!
— Que Krainã a proteja — Éramos ecos assustados.

Conta-se que nos ermos de Vavician conhecido como Campos do Fim do Mundo, existia uma grande cidade chamada Aluisia, era rica em ouro e pobre em honras. Sua perversidade causou a destruição de tudo o que havia ao seu redor, especialmente da Floresta Sagrada, habitação de Rajada, Senhora dos Ventos. Krainã era a rainha dos animais, uma leoa poderosa e orgulhosa que viu toda sua linhagem morrer pelas caçadas dos vavicianos. Em um ataque de fúria invadiu a cidade destroçou a família real antes de ser morta. Conhecida como “vingança dos ventos” foi elevada pela própria Aurora e colocada como guardiã de Aviloan. Suas lágrimas regam a terra quando está triste e, seu rugido é escutado entre as nuvens em dias de fúria.

Naquele momento em que o céu estava pintado de chamas ela era o que nos restava.

Spuk e sua hoste atacava Avalioan, dissera um dos sacerdotes de Homo. Tenho a certeza de ter escutado o rugido de Krainã, quando contei isso ao meu pai que disse ser imaginação de criança. Entretanto, fico com a memória que presenciei seu último rugido e, por conseguinte a queda dos deuses.

Colina das Flores permitia-nos ter uma vista, até então linda, do mar e foi por ele que as hostes de Spuk vieram flutuando. Suas bandeiras com a caveira anunciavam sua chegada, o inicio da era spukiana, o princípio do caos. Homens vestido de metal. Espadas sem compaixão.

Já se passaram quinze anos. Não há mais flores na colina. No segundo dia de desembarque eles nos atacaram, estupraram minha mãe e mataram-na, mas meu pai estripou em combate o mais importante de seus generais. Para nosso orgulho e desgraça total.

A colina foi completamente incendiada e sal foi lançado ao solo como um memorial de impiedade. Meu avô fugiu levando-me, não sei o que aconteceu com Carvin, provavelmente morto como todos que não foram escravizados em Camposverdes.

A vitória do meu pai naquele dia foi uma amostra de que nós não nos curvaríamos de maneira fácil. São quinze anos ininterruptos de guerra, mais navios desembarcam a cada dia e todo o sul foi dominado. Minha terra, meu lar.

Hoje comando as forças de resistência do leste, mas em certo ponto já fomos derrotados. Não nos entregamos e não o faremos de forma alguma. Entretanto, os invasores conseguiram uma grande vitória. Transformou o deus deles no senhor do nosso mundo. Era interessante ver meus soldados beijando um osso preso ao pescoço, símbolo de Spuk, antes de partirem contra os spukianos. No inicio obrigava-os a livrar-se dos objetos, em um momento de descontrole cheguei arrancar uma cabeça por isso, hoje nada preciso falar, comando os “Hereges” como somos conhecidos pelo inimigo. De certa forma tenho orgulho do nome.

— Meu lorde, todas as vilas da região foram queimadas.

— E a população?

— Na estrada.

Segui Sor Cane e vi mais uma das cenas terríveis que se tornaram cotidianas. Em toda extensão da estrada foram cravadas nas laterais estacas com cabeças de mulheres e crianças. “Sem crianças para virarem homens e sem mulheres para darem filhos como vocês lutarão futuramente?”. Tinha lido na carta enviada por Mardoc II imperador dos spukianos. Todas as cabeças tinha um buraco em alguma parte.

— Eles arrancam ossos para servir de amuletos.

Os guerreiros mais poderosos, chamados de “Filhos de Spuk”, arrancavam apenas dos inimigos mais bravos e tinham colares sem espaço para os ossos.

Meus olhos vasculharam o céu em busca de uma luz, mas há exatos malditos quinze anos o sol não apareceria, mesmo sendo dia, nuvens negras deixavam o céu cinza.

— Maldito seja Spuk e todos os que o adoram!

Alguns homens me olharam assustados, reagiam com temor sempre que eu falava dessa forma, por medo dos deuses, independente de qual fosse e, também por terem familiares entre os Louvadores.

— Avancemos. Pelas marcas do acampamento estamos praticamente em mesmo número e não dormirei enquanto não matar um desses malditos!

Cavalgamos rapidamente até que um dos batedores veio avisar.

— Senhor! Estão bem próximos e estamos praticamente no mesmo número. Também já fomos vistos.

— Ótimo.

— Tem outra coisa, os estandartes não são vermelhos.

Os estandartes de Mardoc II eram vermelhos. Só havia um grupo que usava outra cor.

— Pretos?

A confirmação do soldado fez muitos arregalarem os olhos. Eram os “Filhos de Spuk”. Finalmente as duas tropas mais letais se encontrariam no campo de batalha. Podia até imaginar alguém falando assustado no outro acampamento: “São os Hereges”. O pensamento fez-me gargalhar.

— Preparem suas carcaças, infames! É chegada a hora de por um fim nisso! Vamos arrancar Spuk de seu trono e mostrar que um deus pode ser estripado!

O encontro foi rápido. Outras companhias de batalha ficariam um tempo trocando provocações, propondo duelos, marchando para mostrar todo seu poderio. Não nós. Éramos assassinos, guerreiros, para isso viemos ao mundo.

Tem pessoas que conseguem detalhar as batalhas, eu me lembro de muita coisa, mas é complicado liga-las. Desci cavalgando em alta velocidade e com uma lança atravessei o peito de um comandante, com a espada rasguei um pescoço, abri um homem da virilha até o peito e depois disso recordo-me apenas de golpes, terra, sangue, gritos, estandartes encharcados, não faço ideia de como perdi a montaria, sei que levantei e acertei um jovem que tinha idade para ser meu filho, por fim a multidão de corpos no chão. Essa imagem jamais esquecerei.

Da minha companhia eu era o único ainda com condições de ficar em pé, apesar de ter o braço da espada sem movimentos. Do outro lado três cavaleiros spukianos vinham caminhando, dois tombaram alguns passos à frente devido os ferimentos. Restamos apenas nós, os dois lendários comandantes de duas míticas tropas.

Queria dizer que estava pronto para a batalha, mas já não tinha mais forças. Estava preparado para morte, entretanto, desejava a morte gloriosa de combate. O comandante tinha minha altura e usava um elmo fechado. Correu em minha direção acertando-me com um chute frontal e me jongando ao chão. Consegui segurar uma lança, queria morrer com ela na mão. O inimigo levantou sua espada para o golpe de misericórdia. Tentei reagir, mas já não tinha energia. Arregalei os olhos, pois se era hora de partir queria ver o rosto amaldiçoado de Spuk. A espada começou a descer…

O sol apareceu.

Há exatos malditos quinze anos o sol não apareceria, no entanto, sua luz rasgou as nuvens escuras que imperavam no céu. Meus olhos ofuscaram, o fenômeno era tão grandioso que por um momento esqueci-me da espada que vinha em minha direção. Pelos Porões dos Castigos, no dia em que o mundo muda estou partindo, pensei.

Entretanto, a espada também tinha parado. O inimigo olhava para o céu, não diferente esqueceu-se da batalha a ponto de virar as costas. Ele arrancou o elmo, o astro pareceu me dar novas forças; levantei. A luz nos iluminou-nos e falámos em uníssono:

— Irmão?

Enquanto Carvin e eu nos abraçávamos o céu abriu por completo. Crianças apareceram descendo a mata da colina, extasiados por verem o dia pela primeira vez.

E, em meio ao mar de corpos o mundo cruel em que vivíamos ganhou um novo sentido e seu povo uma nova vida.
***
Sentado em um Café no Rio de Janeiro, Roger Santos, conhecido pelo pseudônimo Spuk, fechou seu caderno surrado onde escrevia seus contos de guerra, cheirou as flores que tinha comprado para a mulher que acabara de conhecer e por quem estava completamente apaixonado e, em um novo rascunho iniciou uma poesia, sem trevas nem sangue.

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