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O som da liberdade

O Som da Liberdade

por Jefferson Nóbrega


Em uma rua silenciosa de uma cidade silente. Em um país mudo de um planeta taciturno; um homem chamava a atenção.

Quando ele passava as pessoas erguiam a cabeça e baixavam novamente. Pode não parecer nada espetacular, mas era; pois existiam pessoas que nasciam e morriam sem sequer olhar nos olhos de alguém.

Ele se destacava na paisagem de prédios cinza e árvores secas, suas vestes brancas com tons azuis eram novidades onde o marrom mórbido dava o tom das roupas. Seus sorrisos e movimentos leves assustavam comparados à marcha mecânica que caracterizava todos. A barba e os cabelos grandes mostravam-se como uma grande novidade diante dos rostos perfeitos e iguais.

— Bom dia. — Parecia não se importar com a falta de resposta. Também não demonstrava espanto com a rua engarrafada sem sequer uma buzina apitar.

— Bom dia — repetiu para o jovem sentando em uma cadeira na calçada de uma lanchonete, segurava um cardápio por costume, pois não importando o estabelecimento os pedidos eram padronizados.

— Bom dia, eu sou o Barbudo. — apresentou-se com ainda mais empolgação. O jovem ergueu os olhos e baixou novamente. Não diferente das pessoas que viravam os pescoços e depois olhavam para frente seguindo com suas passadas meticulosas. De cabeça baixa o rapaz parecia fazer um esforço tremendo e, como uma criança que aprende a falar respondeu:

— Bom dia — em um tom de voz lento e fraco. — Sou Ed3406, completou.

— Sei que você sabe falar, mas não tem costume. Assim como todos sabem viver, mas não conseguem. — Mais uma vez os olhos do garoto se levantaram e arregalaram. Não para o misterioso homem barbudo, mas para a patrulha que parou na calçada. O jovem de prontidão ficou de pé em posição de sentido e emudeceu.

Três soldados desceram em uma marcha portando armas, “Guardiões da Ordem”, eram chamados. Tinham a missão de caçar os pecadores, ou seja, todos que desafiavam a ordem vigente.

— Bom dia senhores. — Eles também não respondiam. Chegaram acertando coronhadas e mesmo com o homem no chão não pararam. O Barbudo levantou-se e jogou-se sobre o rapaz que, permanecia como uma estátua e caiu como uma. Aproveitando a oportunidade, antes de ser arrastado pelos soldados, Barbudo colocou algo dentro do terno cinzento do garoto. “Você tem o dom, use-o”, sussurrou em seu ouvido.

Ed permaneceu parado, ereto, sem expressão e, não elevou o olhar nem quando os soldados fuzilaram o Barbudo com suas armas silenciadas, jogaram-no no porta-malas e saíram, nem de uma cantada de pneus o homem foi merecedor. A viatura não emitiu qualquer som.

Assim o garoto foi caminhando em direção de sua casa, passos firmes, todos dado na mesma distância, vistas presas no solo. O mundo era soturno, entretanto, algo tinha mudado. Um barulho tremendo agora ecoava em sua mente.

Entrou em seu condomínio. Todos os edifícios tinham trinta e um andares, ele apertou o número cinco, andar padrão de todos com  nomes iniciados com a letra “E”. Entrou em seu apartamento. Quando tirou o paletó algo caiu. Ficou paralisado, pois nunca tinha acontecido isso. Só aquele fato abalava toda a ordem da sua vida. O barulho na sua cabeça foi aumentando de tal forma que ele caiu ajoelhado, apertando as têmporas, por fim não aguentou e gritou.

Foi arrebatado por sensações novas, primeiro sentiu um alívio e pegou-se gargalhando. Depois foi tomado pelo pânico, sabia que seu grito chegaria longe naquele mundo melancólico. Logo os Guardiões estariam na sua porta. Correu. E isso também foi estranho, suas pernas jamais realizaram movimentos tão intensos, sentiu-se a pessoa mais rápida do mundo.

Quando passou a toda velocidade as pessoas apenas levantaram as cabeças e baixaram em seus gestos automáticos. Por fim, cansado sentou-se no banco da praça. Só então notou que ainda segurava o misterioso objeto.  Era em formato cilíndrico, fino, tendo buracos em sua extensão. Mexeu por muito tempo naquilo sem encontrar qualquer utilidade até que, sem saber o motivo levou-o à boca e soprou forte. O apito agudo atraiu a atenção da multidão que passava. O som foi tão diferente que pela primeira vez eles olharam e fixaram-se dessa forma.

Ed novamente entrou em desespero e fechou os olhos buscando o silêncio em que tanto tempo vivera. Quando percebeu, soprava o objeto novamente, mas dessa vez de forma serena. Entendeu que o som mudava de acordo com os buracos que tampava com os dedos. Foi nesse momento que o barulho em seu íntimo ganhou forma e organizou-se. Ao finalmente criar coragem para olhar para si mesmo, contemplou que fazia sons ritmados combinantes entre si e muito bonitos. As pessoas aglomeram-se em volta dele e ao ver isso ele pô-se em pé sobre o banco.

Teve mais medo ainda quando que seus pés passaram a acompanhar o som e, ao ver sorrisos espalhando-se pela praça esqueceu-se de tudo deixando-se levar pela sonoridade.

Um silêncio súbito reinou quando gritos partiram do outro lado da rua:

— Pecadores!

Achou aquilo interessante, pois seus acusadores tinham rompido o mutismo de suas vidas para atacá-lo. Atrás delas vinha um batalhão de Guardiões. Vendo isso algumas pessoas assumiram a velha postura de estátuas.

— Vocês sorriram e experimentaram a alegria. Estão prontos para voltar à tristeza? — Ed Gritou.

O espanto não pode ser escondido quando um novo som surgiu. Alguns homens pegaram as latas de lixo e passaram a bater nas tampas de maneira ritmada, dessa forma Ed passou a soprar seu objeto de acordo com o o ritmo.

Os Guardiões tentaram avançar, mas era tarde demais. Uma buzina de carro ecoou. Alguém gritou de cima de um dos prédios. Os pássaros passaram a emitir lindos sons e soldados ficaram sem reação. No entanto, o líder da patrulha engatilhou e avançou sozinho, mirando na cabeça do garoto que pulava sobre o banco; atirou.

Atirou, mas não o acertou. No momento em que seu dedo apertou o gatilho um barulho vindo do céu o assustou. As nuvens emitiram um terrível estrondo. E ao escutar o próprio céu rebelando-se, admitiu que nada mais podia ser feito.

Foi até o garoto, fazendo uma tremenda força disse:

— Pecado.

— O pecado leva à morte, mas veja, essas pessoas encontram a vida. — Ed respondeu.

— Não entendo, o que é isso tudo?

— Música! Não sei sequer o significado da palavra, mas está dentro de mim.

Subindo no teto da viatura bradou:

— Isso é música meus amigos, isso é vida!

Estava feito, o mundo não foi mais o mesmo.

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