Pular para o conteúdo principal

O Chapéu

Jefferson Nóbrega

     Pe. Bernardo em sua viagem pela Itália foi presenteado com um chapéu caríssimo, feito por encomenda, desde então, foram raros os momentos que tirou o belo acessório da cabeça.

    Certo dia, já tarde, voltava de ônibus para a paróquia quando um vento arrancou e levou pela janela, a única coisa que escondia sua precoce calvície. Gritou, mas o motorista não deu a mínima e seguiu em frente. Perdia assim seu precioso tesouro.

    O chapéu passou um tempo voando em círculo pela capital do país. Parou em um beco escuro onde uma mulher gritava por socorro, o estuprador fugia tranquilamente e em sua frieza, ainda teve tempo para comemorar a sorte de achar um belo chapéu no chão. O tarado entrou em outra viela, trocou de roupa para despistar a polícia, tirou o boné e colocou algo mais elegante. Assim, foi caminhando tranquilamente em direção de sua residência. Não andou muito. Foi reconhecido pela vítima que estava acompanhada de um grupo de populares, correu, o chapéu voou e gritos foram ouvidos.

    O dia amanheceu e uma multidão acompanhava a perícia de um corpo que havia sido encontrado, pelo que comentavam, fora espancado até a morte. Um morador de rua que esgueirava-se pela multidão acabou encontrando um lindo chapéu jogado. Pegou-o, sacudiu a poeira e sorrindo colocou-o na cabeça. Sentiu-se até mais importante. Desfilou metade do dia com seu novo penante fashion e depois dirigiu-se até a banca do Pereira. José Pereira, havia trabalhado vinte anos em uma empresa, teve alguns problemas de saúde e quando mais precisou foi demitido. Agora sobrevivia, aos trancos e barrancos, comprando e vendendo coisas usadas. Comprou o chapéu por cinco reais e em menos de dez minutos vendeu-o a um velhinho que passava pela calçada.

    O chapéu agora acompanhava o Sr. Francisco Notato, passando quase uma hora na fila do INSS e mais uma hora na fila preferencial do banco, sob olhares enraivecidos de pessoas que continuavam sentados nos mesmos lugares. Com a aposentadoria já no bolso,  o Sr. Francisco  dirigiu-se até a casa da filha para deixar a ajuda mensal. Foi embora, mas esqueceu o chapéu. Sorte dele ter partido cedo, do contrário teria presenciado, ao anoitecer, seu neto roubando as coisas de casa para trocar por crack. Nem o chapéu escapou. Pingos vermelhos passaram a sujar o precioso tecido italiano quando mais tarde, o traficante executou o adolescente por causa das dívidas.

    O corpo foi desovado naquela mesma madrugada, e lá ia o chapéu boiando no córrego. Quando o sol já estava reinante,  foi pego pela aba por um menino descalço, o pequenino brincava naquelas águas poluídas que cortavam a invasão onde morava. Feliz pelo achado, o garoto levou-o para seu barraco, deixou de molho no amaciante, e depois de lavado e seco deu ao seu pai como presente de aniversário. O velho José adorou, havia muito tempo que nada ganhava. No dia seguinte, levou o presente para protegê-lo do sol na obra onde estava fazendo um bico de pedreiro e pintor. Fez um ótimo trabalho, as paredes daquela paróquia nunca estiveram tão bonitas. O padre gostou tanto que além do pagamento deu-lhe uma cesta básica. O bom José agradecido, fez questão que o sacerdote aceitasse a única coisa que possuía, como lembrança da amizade que nascera, seu chapéu. Pe. Bernardo relutante concordou e ficou com o artigo.

     Imaginem o sorriso dele quando reconheceu pela marca que aquele era o chapéu que havia perdido há dias?

     Estava sujo, machucado, cheio de mazelas, mas nem por isso era descartável.

Comentários

  1. Cara, como não cheguei a comentar sobre esse seu conto no ONE, decidi fazê-lo por aqui. =D
    Ficou ótimo! Simples e leve e interessante! Me lembrou vagamente de uns contos do Tchekhov que li em português. O autor é mestre em dar um significado todo especial a cenas do cotidiano, e neste seu conto percebi o mesmo.
    E o mais genial é: a impressão que se tem (bem, a impressão que eu tive) é que o chapéu é o protagonista da história. Acompanhamos tudo pela perspectiva dele. E é o chapéu que acaba "conectando" pessoas que de outro modo não teriam nenhuma relação entre si. Claro, foi o mero acaso que fez ele voar para as mãos de X ou de Y, mas é inegável que, no fim das contas, todas essas pessoas têm em comum uma participação na trajetória do chapéu.
    Parabéns! :)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Esse conto foi interessante, estava no trabalho no horário de almoço e comecei a escrever sem interesse algum, quando vi a história estava formando-se. Gosto muito desse principalmente por trazer uma reflexão.
      .
      Obrigado!

      Excluir
  2. Seria um tanto quanto clichê dizer que me tornei fã de seus textos. Mas acontece que de fato eu o-sou. Um talento incomparável de escrever, de ter a visão de outro ser animado ou inanimado ( chapéu, animal)...não sei se só eu, mas percebo uma naturalidade, uma pintada leve de humor..Não sei bem, sei que gosto disso!

    ResponderExcluir
  3. Obrigado Tpsuni!

    Quando escrevo sobre o cotidiano gosto sim de incluir um leve e as vezes quase imperceptível humor, que bom que gostou. Passa mais vezes por aqui quando puder.

    Abraço!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Origem do nome Nóbrega

A imagem acima  é de uma estela funerária datada do séc. II d.C – III d.C encontrada na Avenida da Liberdade em Braga, Portugal. O seu texto faz referência a cidade romana de Elaneobriga e encontra-se exposta no Museu D. Diogode Sousa em Braga. Diz a estela: SEVERVS REBVRRI F(ilius) TIOPHILVS (sic) ELANEOBR/IGENSIS (sic) NA(norum) XXXX SOD ALES FLAVI D(e) S(uo) F(aciendum) C(uraverunt) Tradução: Severus Tiophilus, filho de Reburrus, de Elaneobriga, com 40 anos. A Confratia dos flavianos tomou a seu cargo erguer (este monumento). Civitas Elaneobriga A localização de Elaneobriga ainda não é conhecida, em 1954 no documento "Novíssimas inscrições romana de Braga. "Brancara Augusta", vol. 4 (25). Braga: Câmara Municipal, pág. P. 242-249", Arlindo Ribeiro da Cunha, indica a atual região de Ponte da Barca como a possível localização da cidade.  Monte onde foi erguido o Castelo da Nóbrega  Esta região era conhecida por Terra da Nóbrega  ou Anóbrega ...

Os Segredos, por Kvothe (O Temor do Sábio Patrick Rothfuss)

Mesmo se não tiver lido o livro, recomendo a leitura desse trecho,não será nenhum spoiler, fique tranquilo. É simplesmente fenomenal. Quisera eu um dia poder incluir em meus contos uma reflexão dessas: Os segredos são dolorosos tesouros da mente. A maioria do que as pessoas pensam como segredo, na verdade, não é nada disso. Os mistérios, por exemplo, não são segredos. Nem o são os fatos pouco conhecidos ou as verdades esquecidas. Segredo, é um conhecimento verdadeiro que é intencionalmente ocultado. Os filósofos discutem há seculos os pormenores dessa definição. Assinalam os problemas lógicos que existem nela, as lacunas, as exceções. Em todo esse tempo, entretanto, nenhum deles conseguiu chegar à uma definição melhor. O que talvez diga mais do que todos os sofismas combinados. Há dois tipos de segredos: Os da Boca, e os do Coração. A maioria deles é da boca. Boatos compartilhados e pequenos escândalos sussurrados. Há segredos que anseiam por se largar no mundo. ...

D. Ourigo Ourigues - o progenitor dos Nóbregas e dos Aboim

Ourigo Ourigues – o Fidalgo ou o Velho da Nóbrega – foi companheiro de luta de D. Afonso Henriques (primeiro Rei de Portugal) nas batalhas de S. Mamede (1128), de Coneja (1137), de Ourique (1139) e de Arcos de Valdevez (1140) bem como seu Castelão-Mor . D. Ourigo reconstruiu nos primórdios da Nacionalidade, a mando de D. Afonso Henriques, o poderoso Castelo de Aboim (tinha sobre a sua alçada o Castelo de Lindoso), que pensa-se ter surgido como Castro na idade do ferro destruído posteriormente pelos Árabes no século VIII. Por conseguinte, D. Ourigo Ourigues faz parte do quadro de honra dos cabouqueiros da Nacionalidade Portuguesa. O que lhe dá a glória de alinhar no número daqueles que foram os primeiros Infanções Portugaleses, e que lutaram pela realidade que é Portugal . O Castelo de Aboim situa-se na confluência das freguesias de Aboim da Nóbrega, Azias e Sampriz, no lugar de Casais de Vide a uma cota de 775 metros. A sua fortificação defensiva constava de um fosso e dois...